domingo, 16 de maio de 2010

O ESPECTRO

“Para as assombrações, desnecessária é a alcova, desnecessária a casa – o cérebro tem corredores que superam os espaços materiais.” Emily Dickinson

Não, não dá mais. Não agüento mais. Tem de ser amanhã. Sem falta. Já sei o que vou falar; difícil será encontrar o momento justo, as palavras certas. As primeiras palavras. Que Deus tenha piedade dele porque eu não posso mais ter. Basta de comiseração. Desta vez não vou fugir, vou superar a covardia, a acomodação, o medo. Vou encarar meus fantasmas. Não posso mais esperar, não quero mais deixar para depois, prorrogar, adiar, protelar, protelar, protelar........

Anoitece. Pelas janelas abertas entra o vento frio do início da primavera. Da poltrona percebo - mais do que vejo - o movimento na penumbra. É apenas uma mancha informe, quase imaterial, que se desloca de um lado para outro e que, aos poucos, cresce ao meu encontro. O terror me paralisa. A figura sinistra, feita de sombras, encara-me com seus olhos vazios, gargalha e exclama - sarcástica - com voz roufenha: “Covarde, não vais conseguir. Nunca!”
Um ódio mortal apodera-se de mim. Recupero os movimentos e atiro-me contra ele, o monstro. Desta vez, nada vai impedir-me vencê-lo. Esquiva-se, eu insisto, até que por fim consigo tocá-lo; minhas mãos, no entanto, encontram apenas o vácuo. Tento novamente, mais e mais, até que alcanço sua cauda. Esta sim, concreta, longa, coleante, coberta de pelos gordurosos, surpreendentemente finos. Apesar do medo e do nojo, eu a agarro com todas minhas forças, mas mesmo assim ela resvala de minhas mãos. Com um grito apavorante, o demônio desaparece.

Endireito-me na poltrona, levanto os olhos devagar, buscando nos desvãos o objeto do meu medo. A lua cheia inunda o quarto, o vento aumentou, a janela bate ruidosa. Um sentimento de alívio percorre meu corpo ao me dar conta de que tudo não passou de um pesadelo. A emoção e o cansaço haviam-me vencido e eu acabara por adormecer. O suor encharca minhas roupas. Meu corpo está tenso, os punhos fortemente cerrados, unhas cravadas nas palmas. Abro com dificuldade as mãos e nelas vejo – espantada – um chumaço de pelos finos e oleosos.