quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

FELIZ ANO NOVO!

Desejo a todos vocês um Abençoado Ano Novo!

                                             Receita de ano novo





                                                                      Carlos Drummond de Andrade





Para você ganhar belíssimo Ano Novo

cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,

Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido

(mal vivido talvez ou sem sentido)

para você ganhar um ano

não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,

mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;

novo

até no coração das coisas menos percebidas

(a começar pelo seu interior)

novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,

mas com ele se come, se passeia,

se ama, se compreende, se trabalha,

você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,

não precisa expedir nem receber mensagens

(planta recebe mensagens?

passa telegramas?)





Não precisa

fazer lista de boas intenções

para arquivá-las na gaveta.

Não precisa chorar arrependido

pelas besteiras consumidas

nem parvamente acreditar

que por decreto de esperança

a partir de janeiro as coisas mudem

e seja tudo claridade, recompensa,

justiça entre os homens e as nações,

liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,

direitos respeitados, começando

pelo direito augusto de viver.





Para ganhar um Ano Novo

que mereça este nome,

você, meu caro, tem de merecê-lo,

tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,

mas tente, experimente, consciente.

É dentro de você que o Ano Novo

cochila e espera desde sempre.

sábado, 25 de dezembro de 2010

RIMAS DE SARA LUNA - I

Quereres e Não Quereres                             

Eu quero, preciso urgente,
Quero hoje, neste instante,
Escancarar as janelas
Para poder respirar.

Quero já, neste momento,
As minhas asas de volta,
Todas as portas abertas,
Pra não querer mais voar.

Tenho fome, tenho sede.
Quero pão, azeite e sal.
Quero um mar para beber,
Espaço pra respirar,
Ar puro pra não morrer.

E quero hoje, quero agora,
As minhas asas de volta,
Portas, janelas abertas,
Pra não querer ir embora.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

HOSTERIA EL FORTÍN - CHUY, URUGUAI




       Quase sempre que vamos ao Uruguai, fazemos escala  em Chuy e nos hospedamos  em um excelente hotel próximo ao Forte de San Miguel (www.elfortin.com). É um hotel de campo, como chamam por lá, situado a  apenas 8 km do centro da cidade em um local tranquilo, com paisagem maravilhosa e ambientes muito agradáveis.       
      O atendimento é excepcional: para citar apenas Vanessa, Graziela e Winston. Porém  não posso deixar de mencionar também o Sereno, pessoa gentilíssima e do mais fino trato, que não é apenas Guarda Noturno mas atua em diversas áreas do hotel,
      No restaurante, não consigo resistir às deliciosas sobremesas:  Natillas (Crème Brulée) e Panqueque de Dulce de Leche, esta última servida quente.
      Lá conheci a poesia do Director da Hostería, Ramón A. Curbelo/Monra - ao qual ainda não tive o prazer de ser apresentada -, mas de quem transcrevo estes versos maravilhosos e que  tentei traduzir.
                                                 
                                              Un día...
                                                                           Monra

Cómo decirle a un hijo...                         
Trabaja… sin presionarlo,
Ama… sin ofenderlo,
Piensa… sin herirlo.


Cómo decirle a un hijo...
Te quiero sin límites
No quiero que te lastimes
Ven a mi lado
No te preocupes,
Sin dejarlo expuesto al dolor del amor,
Al desengaño del amigo
A la soledad del tumulto.


Cómo decirle a un hijo:
Ve… enfrenta la vida
Con todos sus tesoros.
Y todos sus venenos.
Ve…que cuanto antes te lastimes
Más rápido aprenderás a no herirte.


Cómo decirle a un hijo:
Solo tú puedes,
Solo tú lo lograrás,
Solo tú tienes que descubrir el camino.


Como decirle a un hijo…
Tal vez es no decir…
Tal vez es...

                                                             
                                                               Un dia...

Como dizer  a um filho:
Trabalha... sem pressioná-lo
Ama...sem ofendê-lo
Pensa...sem ferí-lo.

Como dizer a um filho:
Te quero sem limites
Não quero que te lastimes
Vem para junto de mim
Não te preocupes,
Sem deixá-lo exposto 
À dor do amor
Ao desengano do amigo
À solidão do tumulto.

Como dizer a um filho:
Vai...enfrenta a vida
Com todos seus tesouros,
Com todos seus venenos.
Vai...que quanto antes te lastimes
Mais rápido aprenderás
A não ferir-te.

Como dizer a um filho:
Só tu podes,
Só tu conseguirás,
Só tu poderás descobrir o caminho.

Como dizer a um filho...
Talvez seja melhor não dizer
Talvez seja  dizer.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

PRÊMIO ZAFFARI - 75 ANOS

Um acontecimento agradável me surpreendeu neste fim de ano. Participei de um Concurso Cultural - Uma História Bem Familiar - promovido pela Cia. Zaffari ao comemorar seus 75 anos. Meu texto foi um dos 75 premiados com um diamante e publicado no livro editado por ela editado: "Histórias para lembrar".
O texto é curto, pois deveria ser limitado a 1 500 caracteres. Aqui está ele:a história é verdadeira e o fato realmente aconteceu:



Reencontro
Dias antes de partir para cursar a Escola Normal em outra cidade, Rosa Terezinha mostrou-me um livro que tratava da separação de duas amigas. Inseparáveis como nós, elas escreveram um poema, cortaram o papel ao meio, ficando cada uma com uma das partes. Fizemos a mesma coisa. Guardei minha metade em um envelope e colei na contracapa de meu Caderno de Recordações. Era costume termos um caderno, onde os amigos deixavam mensagens. Tempos depois, o envelope desapareceu, com certeza levado por alguém curioso.
Após a morte de minha mãe, um ano depois, nos mudamos para Porto Alegre. Com o tempo, Rosa e eu acabamos perdendo o contato.

Algum tempo atrás, eu fazia – como sempre - compras no Zaffari da Otto Niemeyer na zona sul, onde moro há pouco tempo. Escolhia os artigos para colocar no carrinho, quando ouvi alguém, atrás de mim, dizer:
- Nossas mãos estão unidas, no mais sincero querer...
Reconheci os primeiros versos da poesia recortada. Voltei-me, era Rosa! Segurou-me as mãos e prosseguiu:
-... Pensávamos viver juntas
E juntas também morrer.
Juntei-me a ela e continuamos:
- Mas uma tem que partir,
A outra tem que ficar
E nossa tristeza é tanta
Que só podemos chorar.
Vamos partir estes versos,
Na esperança de juntar
Algum dia os dois pedaços...

E assim continuamos. Nenhuma de nós duas esquecera o poema, ainda que passado tanto tempo. Ao terminar, nos abraçamos emocionadas. Finalmente havíamos conseguido – após tantos anos - juntar os dois pedaços do poema do adeus. E sempre lembrarei desse momento de alegria, cujo cenário foi o Zaffari.

Aqui o poema completo, que não coube no texto pois o número de caracteres era restrito.

Poema do Adeus
Nossas mãos estão unidas
No mais sincero querer.
Pensávamos viver juntas
E juntas também morrer.

Mas uma tem que partir,
A outra tem que ficar
E nossa tristeza é tanta
Que só podemos chorar.

Vamos partir estes versos
Na esperança de juntar
Algum dia os dois pedaços
E então alegres cantar:

“Podemos viver agora
Unidas no antigo amor
E nunca mais separar-nos
Nem sofrer tamanha dor.”

NATAL OUTRA VEZ

Adoro esta poesia de Natal!

MAIS UM NATAL

(M. Dinorah)

Por menos que se diga,

Ele se infiltra silenciosamente,

Com seu jeito de prece

E de cantiga,

Nas entrelinhas do querer da gente.



Então, aos poucos,

Nosso sonho abriga essa vontade,

Que se torna urgente,

De repartir uma palavra amiga,

Trocar abraços e se fazer semente.



Que este estado de pausa seja pela graça.

Que haja sinos bailando na vidraça

E a voz da realidade seja um hino.



Que haja ainda um coração na praça

A gritar que, apesar da hora escassa,

Sob a estrela da Paz

Nasce o Menino!





“Que o Senhor nos abençõe e nos guarde.

Nos mostre a sua face e se compadeça de nós.

Volte para nós o seu rosto e nos dê a Paz.”

É NATAL

Este foi um dos meus primeiros textos - comecei a escrever muito tarde - na Oficina de Natal da querida Mestra e Amiga Valesca de Assis, em dezembro de 2006. O desafio era escolher algumas sílabas do nosso nome e, com elas, redigir um conto de Natal. Escolhi estas quatro: SA RA LU NA.

O ENFEITE DE NATAL


Aqui, bem no alto da árvore de Natal, mãos gentis me colocaram em lugar de destaque. No entanto, quase desapareço em meio a tantas bolas coloridas, estrelas recobertas de lantejoulas, corações de cristal, fitas, anjos e luzes, tudo a brilhar, reluzir, cintilar. Não fosse algum raio de luar que incide sobre mim quando brisa suave me embala, não chamaria a atenção de ninguém.
Sou apenas um círculo de papelão macio, recoberto de papel prateado, sobre o qual estão as iniciais S L em cordão vermelho de seda. Nasci das mãos amorosas de uma velha senhora, a quem chamavam Nona. Era Natal e brilhava no alto dos céus a mais bela lua cheia jamais vista. Lembro bem que entre os sons de risos, músicas e tintilar de cálices, percebia-se, vez que outra, o choro manso de um recém-nascido.
São meus dias de glória, estes do Natal. Poucos, mas que me alimentam durante os longos meses escuros em que fico guardado em uma caixa na prateleira mais alta do armário do sótão.
Muitas coisas tenho visto daqui de cima: a primeira foi o bebê a quem chamavam Sara Luna. A cada ano a criança aparecia maior até transformar-se na gentil menina com quem ainda hoje se parece a jovem que me olha lá de baixo com ternura. Certo Natal, radiante, ela chegou acompanhada do noivo a quem, no ano seguinte, chamou de marido. Mais tarde trouxe também o menino de grandes olhos azuis, depois os gêmeos e por último a Piccinina.

Os Natais sempre foram cheios de vida e alegria nesta casa. Alegria que só faltou em um deles: naquele em que a velha senhora de mãos amorosas não mais apareceu.

EN PAZ - AMADO NERVO

 Conheci esta poesia ainda adolescente. Gostei muito dela na época, e ainda gosto demais.
                                                   En Paz
Amado Nervo
(México, 1870-1919. Obras: Poemas, 1901; Serenidad, 1914; Elevación, 1916; Plenitud, 1918; La Amada Inmóvil, 1920.)

Muy cerca de mi ocaso, yo te bendigo Vida
porque nunca me diste ni esperanza fallida,
ni trabajos injustos, ni pena inmerecida.

Porque veo al final de mi rudo camino
que yo fui el arquitecto de mi propio destino;
que si extraje las mieles o la hiel de las cosas
fue porque en ellas puse hiel o mieles sabrosas:
cuando planté rosales, coseché siempre rosas.

Cierto, a mis lozanías va a seguir el invierno;
¡Más tu no me dijiste que Mayo fuese eterno!
...Hallé sin duda largas las noches de mis penas;
mas no me prometiste tú solo noches buenas;
y en cambio tuve algunas santamente serenas...

Amé, fui amado, el sol acarició mi faz.
¡Vida, nada me debes! ¡Vida, estamos en Paz!


Em Paz
Amado nervo
Tradução de Anderson Braga Horta

Perto do meu ocaso, eu te bendigo, ó Vida ,
porque nunca me deste esperança falida
nem trabalhos injustos, nem pena imerecida.

Porque vejo no fim de meu rude caminho
que fui eu o arquiteto de meu próprio destino;
que se os méis ou o fel eu extraí das coisas
foi porque nelas pus mel ou biles amargosas:
quando plantei roseiras, colhi sempre rosas.

Às minhas louçanias vai suceder o inverno;
mas tu não me disseste que maio fosse eterno!
Julguei sem fim as longas noites de minhas penas;
mas não me prometeste noites boas apenas,
e, afinal, tive algumas santamente serenas...

Amei e fui amado, o sol beijou-me a face.
Vida, nada me deves. Vida, estamos em paz.

sábado, 23 de outubro de 2010

RECONSTRUÇÃO

     Este meu blog, há muito tempo sem novas postagens,  foi construído  para meu único e exclusivo prazer. Como um Álbum de Recordações.
    A partir de agora, além de meus pobres escritos também apresentará textos de autores, conhecidos ou não, mas que considero de valor. Terá novos conteúdos tais como viagens,  receitas fáceis e rápidas (quem não gosta?), dicas em geral e sugestões sobre como conviver com  crianças, especialmente com os netos.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O EXECUTIVO

     Para meu amigo Tita
    
     Não sabia como chegara ou o que fora fazer ali. O certo é que se sentia deslocado naquela paisagem, sob o sol inclemente, com sua roupa de trabalho - terno e gravata. Abrigou-se à sombra das palmeiras que limitavam todo um lado da faixa de areia. Depois dela, o mar. Procurou com o olhar: ninguém à vista.
     Uma súbita lufada de vento, com sabor a sal, penetrou-lhe nas narinas e secou o suor que lhe escorria pelo rosto. Levou as mãos à garganta e afrouxou o nó da gravata. A gravata: coleira, jugo, canga, símbolo de sua submissão a um trabalho exaustivo, realizado sob pressão. Tantas e ao mesmo tempo tão curtas eram as horas, que jamais permitiam que chegasse ao fim do dia sem alguma tarefa pendente. Num gesto irritado jogou-a no chão, arrancando às pressas as roupas e os sapatos enquanto corria para o mar.
   Invadido por uma sensação de liberdade nunca antes provada, mergulhou os pés queimados na frescura das águas. Permaneceu imóvel, olhos fixos no horizonte daquele mar sem fim, os pés afundando na areia áspera, encharcada pelo ir e vir das ondas.
     De repente, um ruflar de asas junto ao rosto e o peso leve de uma gaivota em seu ombro arrancaram-no da contemplação.

     - Desculpe-me acordá-lo, senhor, mas estamos iniciando os procedimentos de pouso no aeroporto de Cape Town e o senhor precisa afivelar o cinto.


domingo, 16 de maio de 2010

O ESPECTRO

“Para as assombrações, desnecessária é a alcova, desnecessária a casa – o cérebro tem corredores que superam os espaços materiais.” Emily Dickinson

Não, não dá mais. Não agüento mais. Tem de ser amanhã. Sem falta. Já sei o que vou falar; difícil será encontrar o momento justo, as palavras certas. As primeiras palavras. Que Deus tenha piedade dele porque eu não posso mais ter. Basta de comiseração. Desta vez não vou fugir, vou superar a covardia, a acomodação, o medo. Vou encarar meus fantasmas. Não posso mais esperar, não quero mais deixar para depois, prorrogar, adiar, protelar, protelar, protelar........

Anoitece. Pelas janelas abertas entra o vento frio do início da primavera. Da poltrona percebo - mais do que vejo - o movimento na penumbra. É apenas uma mancha informe, quase imaterial, que se desloca de um lado para outro e que, aos poucos, cresce ao meu encontro. O terror me paralisa. A figura sinistra, feita de sombras, encara-me com seus olhos vazios, gargalha e exclama - sarcástica - com voz roufenha: “Covarde, não vais conseguir. Nunca!”
Um ódio mortal apodera-se de mim. Recupero os movimentos e atiro-me contra ele, o monstro. Desta vez, nada vai impedir-me vencê-lo. Esquiva-se, eu insisto, até que por fim consigo tocá-lo; minhas mãos, no entanto, encontram apenas o vácuo. Tento novamente, mais e mais, até que alcanço sua cauda. Esta sim, concreta, longa, coleante, coberta de pelos gordurosos, surpreendentemente finos. Apesar do medo e do nojo, eu a agarro com todas minhas forças, mas mesmo assim ela resvala de minhas mãos. Com um grito apavorante, o demônio desaparece.

Endireito-me na poltrona, levanto os olhos devagar, buscando nos desvãos o objeto do meu medo. A lua cheia inunda o quarto, o vento aumentou, a janela bate ruidosa. Um sentimento de alívio percorre meu corpo ao me dar conta de que tudo não passou de um pesadelo. A emoção e o cansaço haviam-me vencido e eu acabara por adormecer. O suor encharca minhas roupas. Meu corpo está tenso, os punhos fortemente cerrados, unhas cravadas nas palmas. Abro com dificuldade as mãos e nelas vejo – espantada – um chumaço de pelos finos e oleosos.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

BOAS PÁSCOAS

Foto: tudoemfoco.com.br

Com meus votos de Feliz Páscoa, com muita Alegria, Amor e Chocolates. Espero que gostem destes lindos versos do escritor argentino Mario Vecchioli.
………………….

Salí a buscar a Dios. Y fue sorpresa
hallarlo dentro de mi mismo,
repantigado em mis ideas,
sereno y pensativo.

´- Perdóname - le dije -
si llego tarde para estar Contigo.
Pero es que afuera - sabes? -
el mundo que Tu hiciste es um prodígio
y me atrapó com tanta maravilla.’

...

Dios me miró sonriendo
desde los propios pensamentos míos.
Luego Su voz se pronunció tranquila:
‘ - De que te exculpas, hijo?
Yo nunca dije:
“esta es mi casa
y aquí vendréis a verme los domingos”.
Porque yo estoy en todo tiempo
y en todo sítio.
Y soy la Luz , la Vida , la Alegria
que tú has oído y visto.
Si caminaste el día oyendo
y viendo
y comprendiendo,
yo te digo que hoy ,
en verdad,
tu corazón estuvo hablando com el mío...”

terça-feira, 30 de março de 2010

MEDO DE VOAR

Este texto surgiu em um dos encontros da Oficina para Escrita Criativa da escritora Valesca de Assis. O exercício proposto foi o de falar sobre algum de nossos medos. Não conseguí de início pois a relação dos meus é extensa e apavorante...Finalmente, resolví escrever sobre um deles, ou seja, meu medo de andar de avião. Para enfrentá-lo decidí fazer uma abordagem mais para o cômico. Aqui está o que consegui:
Medo de voar

Fui eu quem insistiu em ir. Ou melhor, supliquei, pois ele não queria que eu fosse. Recusava-se a me ver, dizendo que não tínhamos mais nada a nos falar e que um novo encontro seria a repetição de tantos outros: toneladas de acusações, quilômetros de palavras ferinas, mais mágoa, mais dor, mais frustração. Humilhando-me, de forma vergonhosa, implorei por uma última chance e anunciei que iria de qualquer maneira. Roguei que, caso mudasse de idéia, me esperasse no aeroporto. Permaneceu em silêncio.


No pátio, a aeronave aguarda autorização para decolar e tomar o rumo de Santiago, no Chile. Vou atravessar mais uma vez a cordilheira que avistarei - daqui de cima - branca e gelada. Sinto que desta vez a visão que sempre me encanta e fascina, vai apenas refletir a desolação de minh’alma.Sentada junto à janela, desfio as contas do rosário. De uns tempos para cá morro de medo de andar de avião. Mas não é por isso que rezo, meu medo é outro: e se ele não estiver lá?
Um retardatário pede licença. É um homem muito gordo, de seus cinqüenta anos, que tenta acomodar o corpo enorme na poltrona a meu lado. Acompanho, irritada, seus movimentos, enquanto digo a mim mesma que ele deveria ter comprado dois lugares, já que devia saber que não iria caber em apenas um assento. Por fim consegue e aí está ele: entalado.
Encolho-me, procurando afastar minhas pernas de suas coxas grossas. O Gordo tomou conta do exíguo espaço que nos separa, do braço da poltrona e até da limitada porção de oxigênio que me cabe nesta cápsula quente e malcheirosa que se tornou o avião depois de tanto tempo na pista. O desânimo toma conta de mim ante a perspectiva da longa viagem - mais de três horas - em total desconforto. Não bastassem os meus problemas.
O Gordo retira o lenço do bolso para secar o suor que lhe escorre pelo rosto mas interrompe o gesto quando percebe o rosário em minhas mãos.
- Menina, você reza o terço? – pergunta entre espantado e curioso. - Pensei que só as velhas ainda fizessem isso. Mas é bom que reze mesmo - continua, - tenho um medo danado de viajar de avião.
Devo estar com os olhos inchados, pálida e desfigurada, pois tenho chorado muito. Angustiada e infeliz, não tenho a menor vontade de conversar e sinto raiva pela intrusão. Aproveitando-se de tudo isso,e para desgraça do Gordo, nesse momento o Demônio apossa-se de mim e, com voz meiga, fala pela minha boca:
- Meu senhor, saiba que rezam todos aqueles que têm fé. E, dentre eles, tive o privilégio de ser uma das escolhidas por Cristo para ser Sua esposa, – digo, levantando os olhos para o alto. - Sou freira, da Congregação de São Orfei, o Desmemoriado. (Nossa, onde fui achar este nome!?)
- Freira? Como, freira? E as roupas? O tal de hábito?
Volto um olhar angelical para ele:
- Não usamos mais o hábito. Vestimo-nos como leigas, pois nosso trabalho é fora do convento, dando assistência aos velhos nos asilos, levando-lhes conforto, esperança e a palavra de Deus. - (Eu nem imaginava que o Tinhoso tivesse uma fala tão doce...)
O balofo continua me olhando intrigado enquanto, candidamente, prossigo:
- Sim, meu bom senhor, é preciso rezar, pedir proteção, – esboço um sorriso celestial. - Depois de todos esses desastres aéreos, a desconfiança apoderou-se de nós. Sabemos, agora, que as pistas dos aeroportos não são seguras, os aviões viajam com defeitos, os controladores de vôo não controlam nada e o governo não toma providência alguma. – Faço o sinal da cruz (o Capeta estremece) e olho novamente para o céu.
Noto que meu companheiro de viagem empalidece.
- E, acima de tudo, - volto à carga, deliciada com o efeito que minhas palavras, ou seja, as do Maligno, produzem em meu vizinho – não esqueçamos de que este tipo de desgraça é uma forma que Deus encontra para fazer com que paguemos nossos pecados. E quem não tem os seus? – falo em tom compungido. (Pela forma como me olha, o Gordo deve estar enxergando minha auréola refulgente, enquanto que eu apenas sinto cheiro de enxofre).
Após alguns segundos, curva os ombros, parece diminuir de tamanho. Abre a boca, uma, duas vezes, até que consegue falar, a voz sumida:
- Cometi muitos, muitos pecados. Mas espero que Deus tenha piedade de mim. (A cor do rosto do Gordo agora é cinzenta). - Não quero morrer desse jeito. Não posso morrer assim. Seria horrível!
Belzebu faz que não ouve.
- A tripulação está muito nervosa. Não reparou? – sussurro. - Todos andam de um lado para o outro, apressados, cochichando. – Aproximo meu rosto do dele, um brilho satânico nos olhos: - Ouvi um comissário comentar que a demora se deve a um conserto que está sendo feito. Um conserto?! O senhor entende o que isto significa? - Faço uma longa pausa e, em seguida, o golpe de misericórdia: – Aquele avião, o senhor sabe, o que há poucas semanas explodiu ao decolar no aeroporto de Madrid acabara de ser submetido a um conserto!
O Gordo não responde; sequer se move. Nem sei se ainda respira.
De repente, sinto um profundo mal-estar: aquele sentimento, misto de vergonha e culpa, que toma conta de mim toda vez que passo dos limites e me deixo dominar por meu lado escuro. Cansei da brincadeira. Não tenho mais o que dizer, o que inventar e também estou com medo. Invade-me um tremendo cansaço. O Demo esfumou-se, deixando-me sozinha com meu remorso. Sei que deveria remediar o que fiz com sei lá o que, talvez com palavras animadoras, tomando a mão do Gordo nas minhas, convidando-o a rezar comigo. Mas o desânimo é maior e a incerteza do que me espera tolhem qualquer atitude que eu possa ter para me redimir.
Nesse momento, somos avisados de que foi concedida a tão ansiada autorização e que o avião prepara-se para decolar.


Chegamos ao nosso destino após um vôo tranquilo, sem turbulências, de forma que o Gordo não recebeu a tão temida punição.
E, como nem tudo é justo neste mundo, ainda que eu merecesse, também não fui castigada. Quando desembarquei, ele estava à minha espera.

segunda-feira, 29 de março de 2010

CHAPEUZINHO VERMELHO EM VERSÃO MODERNA

- Oi, moça! Eu quero aquele aí de cima. Não, aquele não! O outro... o do lado, aquele com açúcar e canela... É! Esse aí mesmo.
Olhei para baixo e vi a menina apontando o dedo para mim. Para mim, não. Para o bolo, onde eu estava escondida. Reconheci a menina de cara: era ela, Chapeuzinho. Desta vez usando um boné vermelho, do qual saíam os cabelos castanho-dourados num rabo-de-cavalo.
- Por favor, moça, - voltou a pedir à balconista – faz um embrulho bem bonito, pra presente, que é para eu levar pra minha avó.

Já estávamos no ônibus quando, finalmente, consegui escapar por uma dobra do pacote.
- Credo! De onde saiu esta formiga? – indagou a menina, curiosa.
- Ora, do bolo! – respondi - Eu e minhas companheiras invadimos a confeitaria na noite passada. Nos descobriram e foi a maior chacina. Só me salvei porque me escondi no bolo.
Chapeuzinho Vermelho não se espantou ao me ouvir.. Deve ler muitas histórias e está acostumada com bichos e objetos que falam.
Mas eu estava confusa a respeito de um detalhe e perguntei:
- Mas não é a mãe quem faz os doces para você levar para a avozinha?
- Devia. Mas mamãe trabalha fora e, quando volta para casa, tem muito o que fazer. E chega sempre tão cansada, a coitada...
De repente, Chapeuzinho olhou para fora e disse, levantando-se:
- Tenho de descer aqui. Minha avó mora sozinha lá do outro lado do parque. Olha, - continuou – se você prometer que não vai me picar e nem voltar pro bolo, pode vir comigo.
- Tudo bem. Mas e o lobo?, perguntei, preocupada.
- Que lobo?
- Sua mãe não lhe avisou pra ter cuidado com o lobo?
- Deixa de ser boba, Formiga. Onde já se viu lobo no parque? Ela me avisou foi para não dar papo para desconhecidos. Disse que há pessoas que são mais perigosas que animais selvagens.
Atravessamos o parque sem maiores problemas; somente tivemos de desviar de um cachorrão com cara de delegado.

Um senhor simpático, de cabelos grisalhos, abriu a porta.
- Será que me enganei de apartamento? – perguntou Chapeuzinho, franzindo a testa. Levantou os olhos para conferir o número da porta, e continuou:
- É este mesmo! O quarenta e dois. Eu vim visitar minha avó, a Dona Eunice.
- Eunice! – chamou ele, voltando-se para dentro: – Visita para você!
Em seguida apareceu uma senhora, vestindo calças jeans e blusa vermelha. Não tinha cabelos brancos, não usava óculos e nem tinha cara de avó.
- Minha querida, – disse ela, beijando a menina, - que bom que você veio! Entra, entra, quero que você conheça o Pedro, meu amigo.
- Prazer, Pedro Lobo, às suas ordens, - disse ele. Sorriu e acariciou a cabeça de Chapeuzinho. - Sua avó fala muito em você.
Minha amiga estendeu a mão para o senhor Lobo, mas não disse nada. Decerto achou estranho o nome dele.
Entramos. Quando dona Eunice abriu o pacote e viu o bolo, falou entusiasmada:
- Que delícia! Quase não como mais doces porque tenho que manter a linha. Mas hoje vou deixar minha dieta de lado. Vocês me acompanham num chazinho com bolo? – convidou.
Para falar a verdade, ninguém tomou chá. A menina preferiu suco de uva e eles beberam uma cervejinha. Mas do bolo, todos nós comemos (Chapeuzinho deixava cair, disfarçadamente, algumas migalhas para mim).

Mais tarde, quando nos despedimos, dona Eunice recomendou:
- Adoro suas visitas, meu anjinho. Porém, você deve ligar sempre antes de vir, avisando. Como eu saio muito, qualquer dia desses você pode dar com o nariz na porta.
Mas eu bem que reparei na olhadinha que ela deu para o senhor Lobo enquanto falava.

A FOTO EM BRANCO E PRETO

Ah! Como são dolorosas as penas da adolescência.
E que doçura incomparável têm suas alegrias!



A menor de todas as meninas, a última à direita na foto que encontrei entre estes papéis antigos, aquela com expressão desamparada, sou eu. O vestido que trago - muito grande para mim - havia–me sido emprestado da tia Eunice, baixinha como eu, para que eu pudesse comparecer à festa.

Tinha quinze anos quando vim pela primeira vez a Porto Alegre por alguns dias, a fim prestar vestibular para o Curso Normal, que a pequena cidade do interior, onde eu morava, não oferecia.
Foi gentil da parte da amiga de minha prima - de quem eu era hóspede - ter-me convidado para a festa de seus dezoito anos. Teria preferido ficar em casa, ainda que sozinha, mas a insistência da tia Eunice – que praticamente me obrigou - impediu-me recusar o convite. Além do mais, não havia trazido roupas e sapatos próprios, pois não esperava nenhum convite.

Na festa – ainda a vejo como se fosse hoje –, a música e uma mescla de perfumes espalham-se pelo ar. As meninas riem alto e falam todas ao mesmo tempo, naquela cumplicidade de quem convive diariamente na escola, nas festas e nas matinées. Empurram-se, apertam-se, trocam de lugar, fazem pose para o fotógrafo.
Finalmente, termina a prolongada, porém bendita sessão de fotos. Digo bendita já que durante ela sou poupada de participar das conversas. Acaba, para meu pesar, pois agora começa o baile e eu não sei dançar. Além disso, sou tímida demais. Até desisti das aulas de piano por não conseguir me apresentar em público, como aconteceu no recital de fim de ano da escola. Momentos antes de ser anunciada minha peça, tão duramente ensaiada, fugi para o banheiro onde fiquei chorando, num misto de desejo de tocar e raiva de mim mesma pela falta de coragem.
Sento-me num canto afastado, olhos cravados no chão. Encolho-me o mais que posso para passar despercebida. Cruzo os pés e tento escondê-los debaixo do sofá. Estou com os únicos sapatos que trouxe: aqueles pretos do uniforme do colégio, pois ninguém lembrou de me oferecer outros mais adequados e eu não tive coragem de pedir. Seguro um copo de refrigerante, que não pretendo largar, certa de que, enquanto estiver com ele na mão, ninguém me convidará para dançar. Mas é improvável que alguém queira dançar comigo dada minha triste figura.
“Vamos dançar?” Ergo os olhos para o rapaz parado na minha frente. “Desculpe”, respondo, “mas eu não sei.” ”Eu também não”, diz ele, sorrindo, “mas quem sabe a gente tenta?”. Não tendo mais o que argumentar, levanto-me e nos dirigimos ao centro da sala. Ele coloca os braços à minha volta e eu tento seguir seus passos. Desajeitada a princípio, aos poucos vou ganhando confiança. Afinal, boleros e sambas-canção não são tão difíceis de acompanhar. E ele, ao contrário do que me disse, sabe dançar! É alto, moreno e tem o mais lindo sorriso que já vi. Diz que também é do interior, veio a Porto Alegre para o aniversário da amiga e que meu ar sério e jeito reservado chamaram sua atenção. Conversamos muito, ele dança só comigo e, a certa altura, para mim não existe ninguém mais na sala além de nós dois. Ao final da noite, estou perdidamente apaixonada. Terminada a festa, ao nos despedirmos, pede meu endereço, fica de escrever.

A carta nunca chegou.