terça-feira, 30 de março de 2010

MEDO DE VOAR

Este texto surgiu em um dos encontros da Oficina para Escrita Criativa da escritora Valesca de Assis. O exercício proposto foi o de falar sobre algum de nossos medos. Não conseguí de início pois a relação dos meus é extensa e apavorante...Finalmente, resolví escrever sobre um deles, ou seja, meu medo de andar de avião. Para enfrentá-lo decidí fazer uma abordagem mais para o cômico. Aqui está o que consegui:
Medo de voar

Fui eu quem insistiu em ir. Ou melhor, supliquei, pois ele não queria que eu fosse. Recusava-se a me ver, dizendo que não tínhamos mais nada a nos falar e que um novo encontro seria a repetição de tantos outros: toneladas de acusações, quilômetros de palavras ferinas, mais mágoa, mais dor, mais frustração. Humilhando-me, de forma vergonhosa, implorei por uma última chance e anunciei que iria de qualquer maneira. Roguei que, caso mudasse de idéia, me esperasse no aeroporto. Permaneceu em silêncio.


No pátio, a aeronave aguarda autorização para decolar e tomar o rumo de Santiago, no Chile. Vou atravessar mais uma vez a cordilheira que avistarei - daqui de cima - branca e gelada. Sinto que desta vez a visão que sempre me encanta e fascina, vai apenas refletir a desolação de minh’alma.Sentada junto à janela, desfio as contas do rosário. De uns tempos para cá morro de medo de andar de avião. Mas não é por isso que rezo, meu medo é outro: e se ele não estiver lá?
Um retardatário pede licença. É um homem muito gordo, de seus cinqüenta anos, que tenta acomodar o corpo enorme na poltrona a meu lado. Acompanho, irritada, seus movimentos, enquanto digo a mim mesma que ele deveria ter comprado dois lugares, já que devia saber que não iria caber em apenas um assento. Por fim consegue e aí está ele: entalado.
Encolho-me, procurando afastar minhas pernas de suas coxas grossas. O Gordo tomou conta do exíguo espaço que nos separa, do braço da poltrona e até da limitada porção de oxigênio que me cabe nesta cápsula quente e malcheirosa que se tornou o avião depois de tanto tempo na pista. O desânimo toma conta de mim ante a perspectiva da longa viagem - mais de três horas - em total desconforto. Não bastassem os meus problemas.
O Gordo retira o lenço do bolso para secar o suor que lhe escorre pelo rosto mas interrompe o gesto quando percebe o rosário em minhas mãos.
- Menina, você reza o terço? – pergunta entre espantado e curioso. - Pensei que só as velhas ainda fizessem isso. Mas é bom que reze mesmo - continua, - tenho um medo danado de viajar de avião.
Devo estar com os olhos inchados, pálida e desfigurada, pois tenho chorado muito. Angustiada e infeliz, não tenho a menor vontade de conversar e sinto raiva pela intrusão. Aproveitando-se de tudo isso,e para desgraça do Gordo, nesse momento o Demônio apossa-se de mim e, com voz meiga, fala pela minha boca:
- Meu senhor, saiba que rezam todos aqueles que têm fé. E, dentre eles, tive o privilégio de ser uma das escolhidas por Cristo para ser Sua esposa, – digo, levantando os olhos para o alto. - Sou freira, da Congregação de São Orfei, o Desmemoriado. (Nossa, onde fui achar este nome!?)
- Freira? Como, freira? E as roupas? O tal de hábito?
Volto um olhar angelical para ele:
- Não usamos mais o hábito. Vestimo-nos como leigas, pois nosso trabalho é fora do convento, dando assistência aos velhos nos asilos, levando-lhes conforto, esperança e a palavra de Deus. - (Eu nem imaginava que o Tinhoso tivesse uma fala tão doce...)
O balofo continua me olhando intrigado enquanto, candidamente, prossigo:
- Sim, meu bom senhor, é preciso rezar, pedir proteção, – esboço um sorriso celestial. - Depois de todos esses desastres aéreos, a desconfiança apoderou-se de nós. Sabemos, agora, que as pistas dos aeroportos não são seguras, os aviões viajam com defeitos, os controladores de vôo não controlam nada e o governo não toma providência alguma. – Faço o sinal da cruz (o Capeta estremece) e olho novamente para o céu.
Noto que meu companheiro de viagem empalidece.
- E, acima de tudo, - volto à carga, deliciada com o efeito que minhas palavras, ou seja, as do Maligno, produzem em meu vizinho – não esqueçamos de que este tipo de desgraça é uma forma que Deus encontra para fazer com que paguemos nossos pecados. E quem não tem os seus? – falo em tom compungido. (Pela forma como me olha, o Gordo deve estar enxergando minha auréola refulgente, enquanto que eu apenas sinto cheiro de enxofre).
Após alguns segundos, curva os ombros, parece diminuir de tamanho. Abre a boca, uma, duas vezes, até que consegue falar, a voz sumida:
- Cometi muitos, muitos pecados. Mas espero que Deus tenha piedade de mim. (A cor do rosto do Gordo agora é cinzenta). - Não quero morrer desse jeito. Não posso morrer assim. Seria horrível!
Belzebu faz que não ouve.
- A tripulação está muito nervosa. Não reparou? – sussurro. - Todos andam de um lado para o outro, apressados, cochichando. – Aproximo meu rosto do dele, um brilho satânico nos olhos: - Ouvi um comissário comentar que a demora se deve a um conserto que está sendo feito. Um conserto?! O senhor entende o que isto significa? - Faço uma longa pausa e, em seguida, o golpe de misericórdia: – Aquele avião, o senhor sabe, o que há poucas semanas explodiu ao decolar no aeroporto de Madrid acabara de ser submetido a um conserto!
O Gordo não responde; sequer se move. Nem sei se ainda respira.
De repente, sinto um profundo mal-estar: aquele sentimento, misto de vergonha e culpa, que toma conta de mim toda vez que passo dos limites e me deixo dominar por meu lado escuro. Cansei da brincadeira. Não tenho mais o que dizer, o que inventar e também estou com medo. Invade-me um tremendo cansaço. O Demo esfumou-se, deixando-me sozinha com meu remorso. Sei que deveria remediar o que fiz com sei lá o que, talvez com palavras animadoras, tomando a mão do Gordo nas minhas, convidando-o a rezar comigo. Mas o desânimo é maior e a incerteza do que me espera tolhem qualquer atitude que eu possa ter para me redimir.
Nesse momento, somos avisados de que foi concedida a tão ansiada autorização e que o avião prepara-se para decolar.


Chegamos ao nosso destino após um vôo tranquilo, sem turbulências, de forma que o Gordo não recebeu a tão temida punição.
E, como nem tudo é justo neste mundo, ainda que eu merecesse, também não fui castigada. Quando desembarquei, ele estava à minha espera.

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